A foto nas cores sépia estava bem conservada, mais do que eu
esperava, e conseguia ver nitidamente as feições de Elizabeth e de Hugh. A tia
de Marie tinha sido linda naqueles tempos. Não que já não o fosse, mas as
feições jovens eram de facto um espanto. Conseguia entender como Hugh se tinha
apaixonado por ela.
- Eventualmente começámos a sair mais vezes. Ele levava-me ao cinema,
ao teatro, à pista de patinagem, a todo o lado. Levava-me uma vez por mês ao
centro de Londres, durante um dia. De manhã à noite passeávamos pelas ruas mais
in do momento, como um casal
apaixonado. Estávamos mesmo apaixonados.
O seu sorriso diminuiu um pouco.
- Foram os melhores três anos que eu alguma vez tive, antes de ter
engravidado. – Suspirou. – Poupando os pormenores, quando Hugh soube da
gravidez, assustou-se e mudou de cidade. Durante os primeiros meses escrevi
cartas quase todas as semanas. Nenhuma com resposta. Ao fim de algum tempo elas
começaram a voltar para trás e eu acabei por desistir.
Um nó formou-se na minha garganta ao ver a tristeza nos seus olhos.
- Os meus pais tinham decidido que eu daria o bebé para a adopção. E
eu não tive escolha a não ser concordar. Como poderia eu cuidar de um bebé sem
um pai e sem trabalho para conseguir sustentar todas as despesas?
Parou por um momento.
- Não foi fácil. A maior parte das minhas amigas deixou de falar comigo.
Era frustrante, eu tinha dezanove anos e carregava um filho. Houve alturas em
que me passava pela cabeça ideias completamente absurdas como por exemplo
provocar um acidente que pudesse custar a vida do bebé.
Engoli em seco e Elizabeth olhou finalmente para mim.
- Nunca tive coragem de o fazer, porque no final de contas, era eu e
ele contra o mundo. Acabei por me afeiçoar tanto ao meu filho que por volta dos
seis ou sete meses comecei a duvidar se queria realmente abdicar dele. Quando
as águas rebentaram e eu fui levada de imediato para o hospital St Thomas, o
parto foi normal e sem nenhuma complicação, graças a Deus.
Elizabeth sorriu e eu também.
- E depois? – Perguntei finalmente.
- Depois a parteira meteu Jack nos meus braços. Foi como se todo o
meu mundo estivesse ali mesmo, a olhar para mim com um futuro assutador pela
frente. Mas isso não me asustou. Eu aprendi a amá-lo incondicionalmente e não o
queria longe de mim por nada.
Sorri ternamente.
Elizabeth suspirou e levantou-se do sofá.
- Queres comer alguma coisa? Posso preparar qualquer coisa, precisas
de te alimentar.
Ri baixinho, abanando a cabeça.
- Obrigada, mas não é preciso. O lanche já foi suficiente.
Trinquei o lábio.
- O que aconteceu ao Jack?
Elizabeth voltou a sentar-se ao meu lado e eu endireitei-me contra o
sofá. Ergueu uma sobrancelha.
- Como assim?
Eu não sabia realmente como colocar aquilo em palavras, os meus olhos
instintivamente a contemplarem a sua roupa. Elizabeth percebeu e o choque
passou-lhe fugazmente pelos olhos, antes de rir.
- Credo, querida, ele está bem de saúde e rijo que nem um cavalo!
Hoje foi o funeral do marido de uma vizinha minha.
Não evitei rir-me também da minha suposição idiota.
- Não sei que lhe diga, Elizabeth. Lamento que o Hugh a tenha
abandonado.
Ela sorriu de novo.
- As coisas podiam ter sido muito piores.
Antes que eu conseguisse lhe perguntar o que aconteceu quando os seus
pais souberam que ela ia ficar com Jack, a porta principal abriu e um homem bem
parecido e alto entrou, abrindo a luz da sala. Era Jack e quando reparou em mim
parou por dois segundos à porta.
- Desculpe mãe, não sabia que estava acompanhada.
A sua voz era rouca mas atenciosa quando dirigida para Elizabeth. Aproximou-se
dela e cumprimentou-a com dois beijinhos na cara.
- Não tem problema, filho. Esta é a Bella, amiga de Marie.
Jack voltou-se para mim e sorriu. Eu sorri também, levantando-me e cumprimentando-o.
- Olá – cumprimentei timidamente. Ele puxou-me para um abraço
inesperado e eu não evitei retribuí-lo.
- Eu não fazia conta que tivéssemos visitas, senão tinha trazido
jantar para três. Posso sempre ir num instante ao restaurante e pedir outra
dose – disse Jack, entreolhando-me e à sua mãe.
Olhei para a janela, notando que já estava escuro lá fora.
- Não é necessário – apressei-me a dizer – ahm, acho melhor pedir que
Niall me venha buscar.
- Tudo bem, querida, eu vou ligar à minha sobrinha.
Um quarto de hora depois tocaram à campainha e eu entreguei o robe de
Elizabeth a Jack, agradecendo a sua hospitalidade. Elizabeth acompanhou-me até
à porta e eu entrelacei as mãos no bolso da sweatshirt. A primeira pessoa que
eu vi foi Marie e a primeira pessoa que ela viu fui eu.
Os seus braços lançaram-se sobre mim, esmagando-me num abraço. Conseguia
ouvir o seu suspiro de alívio.
- Eu estou bem – murmurei.
- Não voltes a fazer uma destas – disse ela em resposta.
Só eu consegui ouvi-la e não encarei como uma ameaça as suas
palavras. Era mais como um suplico.
Afastou-se, mas não me largou. Niall estava atrás dela e olhou para
mim, igualmente preocupado. Sorri para ele, para que pudesse perceber que eu
estava bem e agradecida por me terem vindo buscar.
- Boa noite, Elizabeth – cumprimentou a tia de Marie. – Obrigada por
ter tomado conta dela. Estávamos preocupadíssimos.
Elizabeth fez um estalido com a língua.
- Não foi nada de mais. Ainda bem que a encontrei – olhou para mim e
sorriu.
Dei-lhe um abraço de despedida, dizendo “Adeus” a Jack.
Segui Niall até ao seu carro, com Marie no meu encalço. Nenhum deles
me falou durante a viagem. Levaram-me até casa e antes de se irem embora, Marie
levou-me até à porta e informou-me que ia avisar o doutor Peter que eu estava
bem. Felizmente ninguém colocou a polícia à minha procura antes de Elizabeth
avisá-los que eu estava com ela. Eu acenei afirmativamente a tudo o que Marie
me dizia, mas honestamente, não prestei atenção a nada do que ela dizia.
Deu-me um beijo na testa e dirigiu-se ao carro depois de eu abrir a
porta.
Tinha um nó na garganta desde que saíra de casa de Elizabeth e
tornava-se difícil respirar. Qual seria a reação da minha mãe? Estava sem
respostas, mais uma vez. Sentia-me aterrorizada por voltar a vê-la. Tinha medo
que me batesse, mesmo eu sabendo que ela nunca seria capaz disso. Tinha medo
que me pusesse fora de casa ou fosse capaz de cortar por completo o contacto
com ela e com Sam.
Obriguei-me a fechar a porta depois de entrar. Ela esperava-me na
sala e antes que pudesse abrir a porta de novo para fugir, ela voltou-se e
olhou para mim. Ficámos, durante o que me pareceu vários minutos, a contemplar
a figura de uma e da outra. A lareira estava acesa, aquecendo a sala. Conseguia
ouvir a madeira a queimar sob as chamas e a minha respiração pesada. Custava-me
olhar para a minha mãe, quando eu sabia que havia fortes chances de a ter
desiludido.
Claro que a tinha desiludido. A sua filha com quase dezoito anos e
grávida de um cantor famoso. O sonho de qualquer mãe.
Ela foi a primeira a desviar o olhar, voltando-o para o chão. Levantou-se
sem pressas do sofá e veio na minha direção. Continuou de olhos caídos no chão
e parou à minha frente. Olhou de novo para mim e eu parei de respirar.
- Tenta dormir e amanhã falamos.
Foi tudo o que disse. Subiu as escadas para o quarto e quando eu ouvi
a porta fechar, as minhas pernas enfraqueceram e eu caí no chão. Comecei a
tremer violentamente enquanto as lágrimas caíam-me no rosto pela centésima vez
nesse dia. Sentia-me sozinha como nunca me tinha sentido e a sensação era
horrível. Dilacerava-me por dentro, escavando ao máximo e destruindo-me
lentamente. Deixei-me ficar no chão por algum tempo, sem coragem para me
levantar.
Estava cansada e era capaz de adormecer ali mesmo. Não fechei os
olhos, pensando de repente que Sam não me podia ver assim.
Levantei-me do chão e forçei-me a subir as escadas até ao quarto. Os meus
pés estavam frios e sujos, mas não me importei e deitei-me na cama, cobrindo
todo o meu corpo com os lençóis. Depressa o sono abateu-se sobre mim e eu não
tive pesadelos.